O Mundo Antes do Vinho
- Luís Gustavo Bassani
- há 7 dias
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Atualizado: há 2 dias
Não seria um absurdo total se dividíssemos a humanidade em “a.v” e “d.v”, ou, antes do vinho e depois do vinho. O vinho pode ser visto como a representação do processo civilizatório humano, pois este caminha paralelamente ao descobrimento, elaboração, comercio e consumo do vinho.
Três mil anos antes da Era Cristã, entre os rios Tigre e Eufrates, na Mesopotâmia, foi criada uma técnica de registro e decifração de objetos por meio de pictogramas, a escrita. Com ela se dá início ao que chamamos de história. Tudo antes desse advento é pré-história. A escrita possibilitou ao Homem colocar diante de si, por meio de símbolos, sua interpretação do

mundo.
Tratando-se de mundo antigo Egito e Grécia povoam de forma triunfante o imaginário comum. Todavia, essas importantes civilizações muito devem à cultura, organização e conhecimento dos povos mesopotâmicos – sumérios e acádios, estes de origem semita.
A Mesopotâmia, especialmente a Babilônia, legou vasto material que nos permite acompanhar seus avanços na literatura, teogonia e cosmologia, devido aos precisos registros escritos feitos nessas áreas do conhecimento. Uma obra de destaque proveniente dos sumérios, considerada uma das primeiras obras literárias e poéticas da humanidade – senão a primeira - é a “Epopeia da Criação” – ou “a Epopeia de Gilgamesh” - que relata a Criação, o Mito Paradisíaco, a Busca pela Imortalidade e o Dilúvio Universal -, antecedendo o Velho Testamento bíblico em centenas de séculos. Esses dados vieram à luz devido à descoberta, em 1872, dos textos – tábuas - mesopotâmicos por George Smith, onde, até então, acreditava-se ser a bíblia o livro mais antigo do mundo.
Dois mil anos A.C os mesopotâmios influenciaram não apenas os israelitas, autores da bíblia, mas tambem uma outra civilização de despontava à época, os gregos.
A dicotomia greco-bíblica – juntamente com os Romanos, posteriormente – é a pedra-angular da “civilização ocidental” na qual vivemos hoje. Portanto, a civilização mesopotâmica é uma espécie de “ancestral comum” dos três pilares da nossa civilização, quais sejam: os escritos bíblicos do Antigo e Novo Testamento, a Filosofia Grega e o Direito Romano.
Retornando à Mesopotâmia, é da Babilônia a grande parte dos registros escritos (história, portanto) que nos foram legados. Esses registros evidenciam que a bebida mais popular e difundida por lá não era o vinho, mas a cerveja!
Aqui cabe uma nota acerca dos povos primitivos que abandonaram a condição de caçadores-coletores para se dedicarem à agricultura, momento em que se tornaram sedentários. Essa cultura agrícola era centrada nos grãos, passiveis de armazenamento por longos períodos, desde que mantidos secos. Da mesma forma se deu a cultura da vinha que necessitava de um manejo habitual e constante, que era possível apenas para uma grupo geograficamente estável em seu entorno.
A cultura de cerais era propicia na Suméria, devido ao solo de aluvião, recebendo, portanto, total dedicação daquele povo. Os cereais possibilitaram o desenvolvimento cultural, econômico e intelectual dos mesopotâmios tendo em vista que a provisão de grãos gerava a tranquilidade e a paz alimentar necessárias para soluções que possibilitavam a edificação de sua riqueza e, consequentemente, um melhor porvir.
Quando imerso em agua e com o devido tempo de maceração, o cereal germina e fermenta produzindo álcool – e gás carbônico - a partir do consumo do açúcar contido naquele grão. Não é de se duvidar que a mistura do cereal com a agua, que também origina o pão, em algum momento se transformou em um liquido alcoólico, a versão rudimentar do que chamamos hoje de cerveja. Provavelmente isso ocorreu no interior de vasos de barro nos quais eram armazenados esses grãos. Não havia lúpulo, não havia açúcar, não havia cereal maltado, apenas uma agua turva, azeda e com um pequeno grau alcoólico, que os sumérios chamavam de Sikaru, “a embriagante”. Esse liquido primordial bastou para que, com o passar do tempo, fossem desenvolvidas técnicas superiores e eficazes de “brasagem”, fazendo com que toda a sociedade suméria se desenvolvesse em seu entorno.
Além de refrescante bebida, a cerveja era usada pelos Sumérios como medicamento, salário para trabalhadores e, oferenda aos deuses, dada a condição politeísta daquele povo.
O Estado, ou o que quer que seja que fizesse esse papel, era detentor da fabricação e distribuição da cerveja. O controle centralizado da bebida naquela sociedade baseada no escambo seria, para nós o equivalente ao controle estatal da impressão de cédulas de dinheiro. Assim, os locais de “brassagem” dos Sumérios e seus sucessores, os Babilônios, seriam a nossa Casa da Moeda.
Tamanha era a importância da cerveja naquela civilização que a legislação local, o Código de Hamurábi – 1730 a.c – dedicava vários dispositivos à regulamentação das atividades ligadas ao consumo, fabricação, comercialização e comercio da cerveja, como por exemplo, previa o afogamento do mestre cervejeiro – que era um indivíduo de alta reputação - em sua própria bebida caso ela fosse intragável, ou ainda, estabelecia sacerdotes encontrados em locais destinados ao consumo da bebida – bares. Determinava, também, que o pagamento pela venda de cerveja não poderia ser em dinheiro, apenas em grãos de cerais. Ainda, curioso o fato de que as prostitutas babilônicas produziam a própria cerveja que era ofertada aos clientes. A cerveja era, portanto, a bebida símbolo da civilização mesopotâmica.
Inegável a importância da cerveja no contexto social da Mesopotâmia, porém, houve um momento em que o vinho se inseriu nele e, a partir desse ponto, em pouco tempo, difundiu-se nas altas castas como nobre bebida e, por seu “mágico” poder inebriante, revelou-se um poderoso instrumento de ligação dos Homens com os deuses, da terra com o céu, dos mortais com os imortais, sendo utilizado em cultos religiosos e cerimonias relacionadas à fertilidade, à vida e aos mistérios do mundo natural.
O vinho, por sua vez, aos poucos começou a fazer parte da vida cotidiana dos sumérios e babilônios, mas apenas daqueles que podiam pagar altas quantias por ele. A videira já era conhecida dos mesopotâmios ao menos nos últimos quatro séculos do quarto milênio antes da era cristã.
Entretanto, a videira havia sido trazida de outra região, pois o nome sumério era geshtin, e Karânu em acádio, palavra advinda da região da síria onde se falava semítico. Essa era, não por acaso, a mesma região de onde vieram os acádios.
Essa mesma videira da qual se originava o fruto que dava origem ao vinho, inicialmente, era apenas isso, um arbusto frutífero cujos frutos eram passificados e assim consumidos ordinariamente.
Os registros escritos que chegaram a nós demonstram o vinho que começava a ser consumido por lá era importado da “montanha”, significando que era “estrangeiro” pois os limites geográficos a leste e nordeste da mesopotâmia, eram as “montanhas”. Esse vinho provavelmente era proveniente da região delimitada do Crescente Fértil: as encostas do Cáucaso, entre o Mar Negro e o Mar Cáspio, que em divisões politico-geográficas hodiernas é a região onde Irã, Geórgia e Turquia confluem com Armênia e Arzebaijão, onde as evidencias arqueológicas apontam para a gênese da produção do vinho datada de 5.000 anos. Por muito tempo esse fato foi corroborado pela tradição mítica do Egito e Grécia, onde propugnava que exatamente nesse local havia nascido a vinificação e o vinho.
De conhecimento universal, a história bíblica que narra o grande Dilúvio (Gênesis IX, 20) especifica o local do plantio da primeira vinha justamente na região onde hoje é a Armênia e, no texto, Ararat, onde Noé, o patriarca na nova humanidade, ao final do diluvio, ao desembarcar de sua arca torna-se o primeiro agricultor, planta uma vinha e faz o vinho, bebe dele, embriaga-se e fica nu dentro de sua tenda. Ato seguido a isso o texto narra a reprimendo de Deus ao filho de Noé que observa a cena de seu pai embriagado e nú e o julga, chamando o outro irmão para que fizesse o mesmo, porém, esse se abstem de encarar o pai naquela situação, cerra os olhos e cobre o pai, nun ato de caridade. Diante disso a punição de Deus nao recai sobre Noé - que ostentava a embreaguês e a nudez - , mas ao filho que o condena por tal ato, poupando o filho caridoso que acolhe o pai.
O simbolismo contido no texto completo dessa passagem bíblica semítica é bastante norteador do pensamento da época acerca da ação inebriante do vinho e das consequências mundanas e divinas advindas disso.
Esse simbolismo que o vinho traz não é à toa. A ação inebriante que sugere a elevação do espirito ao "olimpo" dos imortais, conecta-nos ao inalcançável mundo dos deuses, tornando-nos menos humanos e mais divinos.
Referências:
PHILLIPS, Hod. Uma Breve História do Vinho. São Paulo:Ed. Record, 2000.
BOTTÉRO, Jean. No Começo erem os Deuses. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.
CARNEIRO, Henrique. Bebida, Abstinência e Temperança na Historia Antiga e Moderna. São Paulo: Ed. Senac, 2010.
STANDAGE, Tom. A Historia do Mundo em 6 Copos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
*Luís Gustavo Bassani