A MESA DA FELICIDADE
- Luís Gustavo Bassani

- 13 de nov.
- 40 min de leitura
Atualizado: 19 de nov.

Uma breve incursão sobre a humanidade e sua relação com a comida e a felicidade.
INTRODUÇÃO
Este artigo pretende versar sobre a felicidade, e como nosso sistema biológico nos impulsiona na busca dessa recompensa. Busca traçar uma incursão histórica acerca da natureza humana e quais os fatores biológicos e históricos que trouxeram o H. Sapiens até nossos dias. Trata, ainda, da produção da mente humana acerca da felicidade, por meio das teorias filosóficas ao longo da história da civilização, e quais os impactos que tais pensamentos provocaram na sociedade. Assim, a busca incessante pela felicidade se mostra como uma predisposição biológica, sendo interpretada, do que se compõe tal auto-realização, de acordo com o momento histórico intelectual e tecnológico em que ela é abordada.
A tal felicidade que nós, humanos, buscamos incansável e perenemente, existe, ou será essa busca, isoladamente considerada, a felicidade plena? A felicidade é inata ao ser humano, por sermos criaturas racionais, no sentido de sermos detentores de uma mente consciente capaz de abstrações e projeções futuras ou ela, na realidade, se dá a uma maior gama de animais, considerando a felicidade como a satisfação imediata de alguma necessidade biológica que permita a sobrevida por mais alguns instantes?
Tais questionamentos se mostram relevantes no sentido de vivermos em uma contemporaneidade onde a felicidade é imperativa, ou seja, uma exigência moral fundamental. O tema fora abordado de forma sistemática por toda a história da civilização, considerando isso o início dos registros dessas manifestações.
Seriam a alimentação e a reprodução, os pilares biológicos da felicidade, quando considerado o sistema de recompensa que a natureza concede, quimicamente, quando o indivíduo satisfaz essas necessidades primordiais, garantindo assim, respectivamente, a preservação da vida do indivíduo e a perpetuação da espécie do mesmo, ou nós, que além de termos a memória evolutiva para tal fim temos, também, o aspecto cultural, que apenas a consciência humana é capaz de produzir, podemos agregar elementos supra etológicos para satisfação plena ou, ao menos, a busca pela felicidade?
Partindo dessa ideia, o ser humano, cuja capacidade cerebral supera a de todos os outros seres, não fica adstrito somente aos dois elementos biológicos primordiais da felicidade, ele vai além.
Em análise das representações rupestres do período neolítico, o elemento humano do “ilustrador” acrescentava uma terceira categoria representativa da felicidade, para eles, qual seja, a reunião de pessoas.
Desta forma, o ser humano e seu característico gregário, ou seja, que faz parte de uma grei, um “rebanho”, pode ser considerado como um terceiro elemento primordial da felicidade, ao lado da alimentação e do ato sexual.
A necessidade humana de viver e conviver com outros da mesma espécie foi o sistema geracional do que conhecemos hoje como sociedade. Diferentemente de outros animais, em geral mamíferos, que tem em comum o sistema gregário de organização, tais como bovinos, caninos, felinos e, principalmente, primatas, dos quais fazemos parte, se utiliza desse aspecto de grupamento para, basicamente, três objetivos, quais sejam, a proteção do grupo de ameaças externas; otimização de coleta e caça; cuidados e provimento da prole.
No ser humano essa predisposição biológica à convivência social toma contornos próprios, contudo, não excluem os três supracitados, apenas os redefine com maiores complexidades e os estende para além de seu elemento estritamente racional garantidor da autopreservação e da perpetuação da espécie, qual seja, a felicidade.
DESENVOLVIMENTO
1.1 Origem e evolução!
As respostas sobre a origem do “homo sapiens”, é um complexo e fragmentado mosaico de vestigios geológicos, arqueológicos, antropológicos e fósseis. Afinal, o que nos torna conscientes da própria existência e do próprio fim, de pensar sobre o passado e planejar o futuro? Por fim, o que nos torna “humanos”?
Nossa classificação taxônomica demonstra o funil evolutivo do qual emergimos, qual seja:
- Domínio: Eukaryota
Reino: Animal (Animalia)
- Subreino: Eumetazoa
- Filo: Chordata (Cordados)
- Subfilo: Vertebrata (Vertebrados)
- Superclasse: Tetrapoda (Tetrápodes)
Classe: Mammalia (Mamíferos)
- Subclasse: Theria
- Infraclasse: Eutheria
Ordem: Primates (Primatas)
- Subordem: Haplorrhini
- Infraordem: Simiiformes
Superfamilia: Hominoidea
- Família: Hominidae (Hominídios)
- Subfamília: Homininae
- Tribo: Hominini
- Subtribo: Hominina
Gênero: Homo
- Espécie: Homo Sapiens
- Subespécie: Homo Sapiens Sapiens
Essa classificação biológica nos dá a dimensão temporal de nossa evolução genética, em torno de 200 milhões de anos. Mas devemos retroceder ainda mais no tempo, para que possamos ter uma visão cosmológica de nossas origens naturais.
Segundo a teoria mais aceita entre os cosmologistas, há 14,5 bilhões de anos ocorreu a grande explosão inaugural, o Big Bang, a singularidade que a tudo deu origem. Nesse momento único, todos os seres humanos, todos os animais que habitam e já habitaram a Terra, todos os átomos e moléculas que compões as incontáveis galáxias, planetas, estrelas e outros corpos celestes, enfim, todo o universo estava contido em um único e infinitamente massivo ponto.
Após essa descomunal explosão, o universo se expandiu (universo inflacionário), perdeu calor e no escuro ficou. As galáxias foram criadas pelo acumulo de poeira cósmica oriunda do hidrogênio criado inicialmente. Dentro dessas galáxias foram formadas as primeiras estrelas, e no interior de seus núcleos, pela fusão nuclear, foram criados elementos químicos de maior densidade, como o carbono. Quando o combustível dessas estrelas (hidrogênio) se esgotava, entravam em colapso gravitacional e explodiam liberando esses elementos de volta para o universo (supernovas), que formavam novas nuvens cósmicas, que originavam novas estrelas, que em seus núcleos sintetizavam elementos químicos cada vez mais densos e que colapsavam em uma grande explosão que alimentava o universo com novos elementos que, aglomerados, formavam novas estrelas e assim sucessiva e infinitamente.
Essas nuvens de poeira cósmica maciças e carregadas de elementos se acumulam e dão origem às aglomerações denominadas nebulosas, e essas, por sua vez, originam sistemas planetários, como o nosso Sistema Solar. Tudo isso dentro de galáxias afastadas entre si de milhares ou milhões de anos luz (“anos luz” é uma forma de mensurar distancias cósmicas tomando por base o espaço que um fóton de luz viaja em um ano terrestre, levando em conta que a velocidade da luz é algo em torno de 300 mil quilómetros por segundo).
A formação do planeta Terra se deu por volta de 4,4 bilhões de anos atrás e dentre suas propriedades estavam moléculas orgânicas compostas por carbono, elemento que possibilitou a origem da vida. Foram estéreis os primeiros 400 milhões de anos terrestres. Temperaturas (ainda que naquele ponto ainda não possuísse uma atmosfera) superiores a 200 graus Celsius impossibilitavam a formação e manutenção de moléculas de água (H2O), quiçá ela em estado líquido. A crosta se apresentava em estado liquefeito e a atmosfera era saturada com gás CO2 provenientes de incessantes atividades vulcânicas neste período da Terra em formação.
À medida que o tempo passava a temperatura diminuía, a crosta se solidificava e a temperatura mais amena começou a possibilitar a formação de moléculas de água em estado gasoso e posteriormente líquido, o que foi de fundamental importância para, juntamente de inúmeros outros fatores, originarem a vida.
Nesse período a camada de ozônio era inexistente, fato que possibilitava a incidência de energia radioativa do sol diretamente na superfície do planeta. Isso provocou reações químicas nas moléculas orgânicas, supra mencionadas, que integravam a formação elementar do planeta, fazendo com que estas se tornassem mais complexas, em especial por nitrogênio, enxofre, carbono, hidrogênio e oxigênio. Essas moléculas complexas tinham os elementos fundamentais para a vida, e serviram de “tijolos” para a formação das primeiras moléculas biológicas.
Outro fator fundamental para a gênese que comumente não recebe a atenção devida foi, nesses primeiros tempos, a formação do nosso satélite, a Lua. Há duas teorias para a formação sua formação: a primeira reza que um planeta do tamanho de Marte, chamado Theia, se chocou com a Terra, de modo a expor seu núcleo e parte dele foi projetado para a elíptica e, após seu resfriamento e condensação, entrou em órbita e todo o entulho restante da colisão com o tempo, foi se aglomerando em forma esférica, devido à atividade gravitacional.
A segunda teoria versa que apenas um quinto do material lunar é oriundo da Terra, o restante é de diversos pequenos corpos (pelo menos 20) que colidiram com nosso planeta sequencialmente e os detritos desses impactos foram lançados para a órbita do nosso planeta, o que ocorre depois é consequência física. O ponto fraco dessa teoria que os cosmólogos não explicam é o fato de que a Lua tem exatamente a mesma constituição geológica da Terra.
Esse satélite importa como elemento indispensável à criação da vida porque sua força gravitacional mantem estável o eixo de inclinação da terra, evitando, assim, bruscas mudanças climáticas, além das marés, movimentos de elevação e declínio do nível do mar que possibilitou a migração de micro-organismos de um lugar para outro, além de ter sido fundamental na transição da vida do mar para a terra.
Ademais, as grandes quantidades de CO2 decorrentes das intensas atividades vulcânicas nesses primórdios também foram cruciais, pois garantiram a reciclagem do carbono utilizado pelos organismos vivos em seus processos metabólicos.
Tais condições concatenadas de forma incrivelmente convenientes possibilitaram, a partir da “sopa primordial”, o surgimento da vida no planeta Terra. Atualmente é sabido que, dadas as condições ideais para tanto, algumas biomoléculas podem ser espontaneamente geradas. Estima-se que a vida, em seu mais simples formato, unicelular, surgiu há 4 bilhões de anos e os seres vivos multicelulares há 2,1 bilhões de anos.
Há 530 milhões de anos deu-se a chamada “Explosão Cambriana” que foi o aparecimento relativamente rápido de formas de vida mais complexas. Os fósseis que simbolizam esse período são os dos chamados “trilobitas”. Considere que até cerca de 580 milhões de anos havia apenas formas simples de vida, como as bactérias que se agrupavam, por vezes, em colônias.
Desde a explosão cambriana muita coisa aconteceu. De crustáceos aos grandes répteis, até os primeiros mamíferos. Consideremos que a extinção dos dinossauros se deu há 65 milhões de anos. Após isso, os pequenos mamíferos, insetos e répteis menores, que destes alguns evoluíram para aves, mantiveram, com muito custo, a chama da vida no planeta.
Cinco milhões de anos atrás, (cerca de 60 milhões de anos após a extinção dos grandes répteis) surgiam os primeiros hominídeos, os Sahelantropus tchadensis. Nesse período surgia o ancestral comum dos hominídeos, um primata que devido às mudanças climáticas e o surgimento de planícies e savanas, desceram das árvores e iniciaram a coleta de alimentos em solo. Disso decorreu a necessidade de grandes deslocamentos para buscar alimentos, o que aprimorou, pela seleção natural, a coluna vertebral que possibilitava a posição ereta e pernas mais longas, o bipedismo, para caminhadas mais velozes e capazes de cobrir maiores distâncias. Para isso a natureza precisou de cerca 2 milhões de anos.
Desde os Sahelantropus tchadensis, há 5 milhões de anos, inúmeros hominídeos caminharam pela Terra. Dos achados fósseis, temos, além desse primeiro já citado, os Orrorin tugenensis; Ardipithecus kadabba; Ardipithecus ramidus; Austrolopithecus anamensis; Hominíneos bípedes de Laetoli; Austrolopithecus afarensis; Austrolopithecus bahrelghazali; Kenyanthropus platyops; Austrolopithecus deyremeda; Austrolopithecus africanus; Paranthropus aethiopicus; Australopithecus garhi; Homo rudolfensis; Homo habilis; Paranthropus boisei; Paranthropus robustus; Australopithecus sediba; Homo erectus; Homo ergaster; Homo antecessor; Homo heidelbergensis; Humanos de Denisova; Homo neanderthalensis; Homo naledi; Homo floresiensis, os Hobbits; Homo luzonensis; Homo sapiens.
De todos os hominídeos, nós, do gênero Homo o Homo Sapiens, foi o único que se adaptou e sobreviveu às mudanças do mundo. Nos últimos 50 mil anos convivemos (não sabemos se pacificamente) com ao menos duas outras espécies de hominídeos, os Neandertais e os Denisovanos. Sabemos, hoje, que temos pelo menos 1% de DNA Neandertal, isso quer dizer que em algum momento da história os Sapiens e eles mantiveram relações sexuais, sendo, de alguma forma, nós os seus descendentes.
Em algum momento entre 30 e 10 mil anos atrás, alguns agrupamentos humanos essencialmente nômades, que até então faziam a colheita de grãos esparsos na natureza, sempre que o encontravam, começaram semear tais grãos de forma que ficassem dispostos mais próximos um do outro, facilitando sua colheita. Nascia assim a agricultura.
Os grãos que iniciaram a agricultura foram o trigo e a cevada, pelo fato de terem maior tamanho, facilitando, assim, sua captura.
Essa nova forma de concentração de alimentos exigia cuidados e certa dedicação para que chegassem à sua plenitude e produzissem os grãos aptos à colheita. Isso forçava esses agrupamentos a se fixarem no local desse plantio, onde também deram início ao confinamento de animais como cabras e ovelhas, pois já não dispunham mais da disponibilidade de tempo para longas jornadas, para encontrar rebanhos em estado selvagem para abatê-los. Isso iniciou e fixou o processo de sedentarismo e que mais tarde culminaria na criação as primeiras “sociedades” humanas.
Essa formação embrionária do que chamamos hoje de cidades nada mais eram do que um aglomerado de seres humanos, algumas dezenas de pessoas, que criaram um sistema de cooperação sedentário para a manutenção da sobrevivência, implicando nisso a provisão de alimentos e segurança contra ameaças externas, sejam elas por predadores ou outros grupos humanos.
Compreendia o desenvolvimento e especialização de atividades específicas pelos indivíduos. Indicações arqueológicas, inclusive com pinturas rupestres e artefatos cerâmicos, sugerem fortemente que nesse momento inicial a cooperação sexual homem/mulher foi fundamental para o sucesso da sedimentação dessa formação.
A cooperação se dava em razão da aptidão natural de ambos os sexos. Diante das diferenças morfofisiológicas entre o homem e a mulher, seus papeis nessas sociedades primitivas foram naturalmente delineados. Por ter uma compleição musculoesquelética que proporciona mais força e tração, notadamente pelas formações ósseas maiores e essas dotadas de aspereza própria para proporcionar maior ancoragem das formações musculares, estas com maior dimensão e hipertrofia, além de concentrar no tronco, mais longo do que nas mulheres, grande capacidade de alavancagem. Isso facilitava e otimizava, por exemplo, ataques a presas e oponentes com lanças (pontas de pedra) e bordunas, devido ao maior ângulo de alavanca que esse desenho fisiológico proporciona. Mas nada disso teria valia se desse sistema fosse suprimida a agressividade, proveniente da testosterona, valioso hormônio que possibilitava índices de sucesso consideráveis quando da caça ou da defesa das mulheres (geralmente grávidas quando em idade fértil), prole e grupo social.
Deve ser considerado que essas sociedades primitivas deviam ser povoadas predominantemente por mulheres, dada à grande taxa de mortalidade dos indivíduos do sexo masculino pela caça e defesa. O índice de mortalidade infantil também era altíssimo. As mulheres, por sua vez, tinham como grande fonte de mortalidade, o parto.
As mulheres que já não mais estavam em idade fértil (as que conseguiam alcançar essa fase), segundo a chamada “teoria da avó”, tinham como função natural o auxílio aos cuidados da prole de suas filhas (ou das crianças da comunidade, dado o contexto). Segundo essa teoria, quando as mulheres perdem a capacidade reprodutiva, com a menopausa, naturalmente deixam de ser um atrativo aos indivíduos masculinos, por alterações estéticas importantes, dada a diminuição da produção de hormônios femininos, como progesterona e estrógeno. Com essa supressão hormonal as mulheres perdem as “características femininas” que servem de atrativo sexual, (dado que a libido masculina, em proporções menores nas mulheres, é ativada preponderantemente pelo apelo visual que a mulher ostenta, pois exalta suas qualidades reprodutivas, tais como alargamento pélvico e volume dos seios, além de outros “informativos” genéticos, como, por exemplo, saudabilidade) pois há diminuição do acúmulo de gordura na região da cintura pélvica e nádegas, diminuição do tecido mamário e substituição desse por células adiposas, modificação na tez, cabelos e voz. Assim, deixando de atrair os indivíduos masculinos, deixam, por consequência, de competir com as “filhas”, onde a natureza deposita todo seu esforço reprodutivo. Essas propriedades da “avó” a direcionariam para o cuidado da prole, também pela experiência acumulada, o que é de grande valia em momentos de crise.
Desta forma, dados arqueológicos indicam que às mulheres cabia a função de semeadura, colheita e manufatura dos grãos, como a moagem, por atrito de pedras. Aos homens, a caça, obtenção de recursos naturais pesados, fabrico dos abrigos e utensílios ferramentais, e proteção da comunidade como um todo.
Por isso atribui-se às mulheres a criação do pão e da cerveja, alimentos oriundos da manipulação de grãos. Esculturas cerâmicas, sumérias e egípcias, de figuras femininas manipulando grãos em pilões sugerem ao menos de 5 a 7 mil anos dessa cultura atribuída às mulheres.
Assim, a humanidade acumulou experiências e as repassou por meio das tradições, por diversas gerações.
1.2 – O Caminho evolutivo do cérebro humano
Distintamente das outras espécies, o homem é o único animal que se questiona acerca da própria existência, planeja o futuro e admira, questiona e investiga o universo em que vive. Podemos dizer, portanto, que o ser humano é a matéria universal que se fez consciente, ou então, que somos a própria consciência do universo, já que temos a capacidade de pensar acerca do mundo que nos cerca e ir além, refletir sobre o próprio universo que nos criou.
Mas qual o caminho evolutivo que moldou o cérebro do “homo sapiens”?
Considerando a linha evolutiva do sistema nervoso dos vertebrados vamos, em apertada síntese, traçar uma linha temporal desde o sistema antigo, ainda embrionário, das estruturas dos vertebrados.
Sendo um regulador e um meio de interação entre o organismo e o ambiente, o sistema nervoso eficaz torna apto o ser a se perpetuar como espécie. O sistema nervoso, portanto, é refinamento de sua própria evolução, considerando esta como mudanças adaptativas que ocorrem com o passar do tempo.
Deve ser considerado que a natureza trabalha com um sistema de erros e acertos quando se trata de modificações evolutivas. Quando as leis naturais acertam em uma modificação, o organismo, apto, persiste na cadeia evolutiva. Quando as leis naturais “erram” na seleção de alguma modificação evolutiva, esse organismo se extingue, em hipóteses consideráveis, se modifica a ponto de originar uma nova espécie ou um novo tronco evolutivo da espécie extinta.
O sistema nervoso em termos ancestrais eram neurônios reunidos em estruturas denominadas gânglios, os chamados “plexos”. Essas estruturas não eram agrupadas em um órgão único, compactado em uma estrutura com um fim específico.
Os sistemas nervosos dos organismos tais qual conhecemos hoje são originários desses plexos primitivos. Nos vertebrados a compactação desses plexos nervosos deu-se pelo advento do tubo neural. Outra grande inovação evolutiva que tornou os organismos mais complexos e com maior capacidade de interação com o meio e, consequentemente, maior capacidade de adaptação e perpetuação foi a medula espinhal.
A medula espinhal é uma estrutura que controla de forma consciente a musculatura esquelética. Essa musculatura, denominada somática, trabalha de forma independente da musculatura autônoma, como o diafragma. Essa modificação nos organismos permitiu que os comportamentos mais elementares, como a alimentação e a locomoção, se tornassem mais eficazes, gerados por sistemas rítmicos nas redes neurais.
Sistema decorrente da disruptiva evolução dos hemisférios cerebrais e presente apenas nos mamíferos, dispondo-se em camadas celulares, o “neocórtex” é responsável pelas “funções cognitivas superiores” e à consciência e cognição nos seres humanos, ou seja, a mente humana.
O neocórtex é o maior ponto de divergência entre os cérebros dos répteis e dos mamíferos no que tange a utilização de estruturas sensoriais como sendo principais. Nos répteis a estrutura sensorial principal é a crista dorsoventricular, no pálio ventral, enquanto nos mamíferos é o néocortex, no pálio dorsal.
Nos primatas o volume cerebral, relativamente a outros mamíferos de igual porte, é duas vezes maior. Essa medida é denominada “coeficiente de encefalização”, que se caracteriza quando o tamanho do cérebro de uma determinada espécie sofre uma curva quanto ao tamanho esperado deste relativamente à sua massa corporal.
Mas afinal, qual a acepção de ser um mamífero da ordem dos primatas?
A Prof. Suzana Herculano-Houzel, realizadora de uma importante publicação acerca da contagem exata do numero de neurônios em um cérebro e sua relação com o coeficiente de encefalização, aponta que uma das maiores vantagens, em termos encefálicos, dos primatas sobre os outros mamíferos consiste nas modificações evolutivas que propiciaram um acondicionamento econômico dos neurônios no cérebro, que diferentemente de outros mamíferos, o aumento do numero de neurônios não acarreta o aumento do tamanho médio das células, possibilitando, desta forma, mais neurônios em um volume relativamente menor do cérebro .
Dessa informação podemos concluir que o cérebro dos primatas não tem a mesma “engenharia” construtiva dos cérebros dos outros mamíferos. A relação entre volume cerebral e o numero de neurônios é diferenciada nos primatas, como dito acima. Isso é regra entre os primatas, mas e nós, hominídeos, o que nos diferencia dos outros grandes primatas?
Ainda de acordo com os estudos supra citados, as regras neurais de proporcionalidade devem ser adequadas não ao homo sapiens (nós) relativamente aos outros grandes primatas (gorilas e orangotangos, por exemplo), mas em relação àqueles a outros hominídeos, ainda que todos já extintos.
Vale, aqui, a preleção da citada autora, in verbis:
Nossa espécie surgiu há menos de 1 milhão de anos; nosso mais recente ancestral em comum com os gorilas e orangotango viveu há cerca de 16 milhões de anos; todos os primatas compartilham mais de 50 milhões de anos de historia evolutiva. Se as mesmas regras neuronais de proporcionalidade que se aplicavam há 50 milhões de anos atrás ainda se aplicavam há 16 milhões de anos (quando surgiram as linhagens do gorila e do orangotango)e há menos de 1 milhão de anos (quando nós surgimos), isso significa que também se aplicavam às espécies que viveram nesse meio tempo: nossos prováveis ancestrais homoníneos, como os austalopitecíneos, que viveram entre 4 e 3 milhões de anos atrás, e o homo erectus que viveu entre 2 milhões e 1 milhão de anos atrás. (HERCULANO-HOUZEL, 2017, pág. 128)
Desta forma, quando relacionadas as capacidades cranianas e seu número neuronal entre espécies hominíneas extintas, que são nossos ancestrais, e a capacidade da mesma ordem em nossa espécie vislumbrou-se de que houve uma evolução progressiva e simétrica entre a capacidade craniana e o número de neurônios no encéfalo e a massa corporal mostra que nosso encéfalo condiz em tamanho e número de neurônios com a massa corporal de outros grandes primatas não classificados como humanos.
Temos, assim, que nossa espécie não é exatamente um extraordinário fenômeno da natureza, onde nossa relação da capacidade craniana e número de neurônios relativa à nossa massa corporal está condizente com nossos ancestrais evolutivos da espécie Homo, excetuando os grandes primatas vivos.
Temos, sim, além de um número de neurônios muito superior a cérebros primatas com o mesmo volume, um volume cerebral superior quando relacionado à nossa massa corporal.
Isso nos mostra que apesar de termos as vantagens que o cérebro humano nos proporciona, como a cafeína, nicotina e o álcool, somos notáveis, mas não extraordinários
1.3 – O fogo e a carne: a gastronomia nos tornou humanos.
O encéfalo humano (moderno) possui 86 bilhões de neurônios em um corpo com massa média de 70 quilos. Somos primatas e por mais que tentemos nos afastar dessa condição biológica natural, nosso cérebro é construído a partir de estruturas construtivas básicas dessa ordem. Isso significa que “...segundo nossas estimativas para um primata genérico com a nossa massa corporal e um consumo médio aproximado de duzentas calorias por hora” (HERCULANO-HOUZEL, 2017).
Esse aporte calórico nos exigira, ainda segundo a autora, cerca de nove horas diárias dedicadas à ingestão de alimentos, o que, de fato, é inviável no mundo moderno, e já o era nos primórdios. Diante de tal fato, em termos teóricos, comparando-nos com outros primatas e relação de massa corporal com volume encefálico e quantidade de neurônios, nossa existência não seria viável.
O aporte calórico para sustentar uma expansão neuronal tão significativa nos da espécie homo, considerando que seus encéfalos triplicaram de volume em 1,5 milhão de anos, não poderia ser proveniente da dieta adotada pelos outros primatas de igual porte. Para representar o quanto esse ganho em número de neurônios foi exponencialmente abrupto, consideremos que os primatas precisaram de 50 milhoes de anos para terem um acréscimo de 29 bilhões de neurônios (do lêmure ao gorila), mas apenas 1,5 milhões de anos (conforme supra citado) para um acréscimo de 57 bilhões de neurônios – isso apenas aos encéfalos da espécie homo , os demais primatas mantiveram o mesmo numero de neurônios, até hoje. (HERCULANO-HOUZEL, 2017, p. 260).
Esse aumento significativo e crucial para que pudéssemos estar aqui, hoje, refletindo e escrevendo sobre isso, se deu pelo fato de os Homo conseguirem extrair grandes quantidades calóricas em menos quantidades de alimentos em menor período e com o mesmo corpo, ou seja, não houve a diminuição do corpo (e consequentemente do encéfalo), que exige menos calorias, mas o aumento de calorias no mesma massa corporal. Essa maximização da ingestão calórica se deu pela modificação da dieta de nossos ancestrais há cerca de 2 milhões de anos.
A importância desse ganho energético relativamente ao ganho neuronal se dá pelo fato de que isso exige enormes quantidades de energia para sua manutenção e funcionamento. Isso porque o cérebro humano, que representa 2% da massa corporal, consome o equivalente a 25% da energia necessária para o funcionamento de todo o corpo, ou seja, é extremamente custoso.
Como tudo em termos evolutivos, esse processo de modificação da dieta humana foi longa e seguida de modificações morfofisiológicas. Há 4 milhões de anos nossos ancestrais iniciaram a marcha ereta e o bipedalismo, propiciada por modificações na coluna vertebral e no crânio, em especial na base dele. Isso ensejou, além do gradual amento da caixa encefálica, o alongamento dos membros inferiores, com maior elasticidade dos tendões, dedos dos pés menores, hipertrofia dos músculos glúteos e inúmeros outros na estrutura musculoesquelética possibilitou que os humanos percorressem grandes distancias em menor tempo, em busca de alimentos a serem coletados. Ainda, fundamentalmente foi a maior aptidão e êxito nas caçadas.
Quando do surgimento dos Homo erectus, há cerca de 2 milhões de anos, essas modificações já estavam concluídas. A essa altura, a distância evolutiva entre os da espécie Homo e os outros primatas não humanos era tão significativa que enquanto aqueles já praticavam a caça ativa, estes ainda se limitavam a dieta coletora vegetariana, como o fazem até hoje.
Digno de nota que o consumo da carne foi o grande estopim para o desenvolvimento encefálico que se sucedeu. Provavelmente alimentando-se, nesses primórdios, de carcaças em decomposição, esse suprimento de ácidos graxos, proteínas e calorias extras foi crucial para impulsionar essa mudança evolutiva entre 4 e 1,5 milhoes de anos, ou seja, entre os australopitecínoes e o primeiro Homo.
A partir do homo habilis (2 milhões de anos) um aumento vertiginoso do tamanho e do numero de neurônios se decorreu. A esse aumento atribui-se uma nova mudança na dieta com um novo e radical aporte calórico. Há evidencias de que os ancestrais dos primeiros Homo já haviam técnicas de pré-digestão dos alimentos há 4 milhões de anos, coisa que os ancestrais dos grandes primatas não humanos nunca fizeram (HERCULANO-HOUZEL, 2017, p. 265)
Esses processos de desnaturação do alimento por meio de ações físicas sobre eles, como cortar e esmagar por esses hominíneos ancestrais, podendo ser incluído processos pré-digestivos até mesmo a carne coletada de animais já em decomposição, possibilitaram um aporte calórico extra, aliado ao menor consumo de energia para sua digestão (daí a importância da pré-digestão) e com isso um crédito em energia que gradualmente fora direcionado ao cérebro e seu vultuoso aumento.
Esses processos de pré-digestão, exclusivo dos ancestrais humanos, como já dito, poupavam energia do processo digestivo. Isso culminou na diminuição do trato intestinal, fato que também contribuiu que nosso corpo suportasse em termos energéticos o número de neurônios de que dispomos. Contudo, retornando à radical mudança dietética a partir do IH. habilis se deu não pela introdução de um novo e miraculoso gênero alimentício hipercalórico, mas alterações na forma de como os alimentos seriam pré-digeridos, ou desnaturados, graças aos processos de maceração, exposição ao sol, e até mesmo alguns tipos de pré-decomposição quando enterrados por algum período.
Antes do domínio, alimentos, em especial carnes, “cozidas” ao fogo já deviam ser muito apreciados pelos primeiros hominídeos. Isso não quer dizer que eles já dominassem seu uso, mas que provavelmente coletavam animais mortos por incêndios, parcial ou totalmente carbonizados. Esses animais “assados” dispunham, como bem sabemos, de um sabor diverso do estado de cru e eram apreciados não apenas pelos hominíneos, mas por todos os animais carnívoros. Além do sabor, essa carne, pré-digerida, tinha maior aceitação no trato digestivo, além de maior biodisponibilidade de seus nutrientes, mas é claro que eles não sabiam disso.
Em algum ponto entre 1 milhão e 500 mil anos atrás, os hominídeos dominaram o fogo. Esse foi, de fato, o principal salto tecnológico da espécie Homo, até hoje. A utilização do fogo em ambiente doméstico alterou todo o processo de preparação da alimentação, bem como as relações sociais inerentes a ela.
Como já dito, a predileção pela carne desnaturada
ao fogo (no caso, em incêndios) não era exclusividade dos hominídeos, mas de todos os animais carnívoros, entretanto, apenas aqueles tinham, agora, o domínio de assar animais a qualquer tempo, não precisando mais coletar cadáveres carbonizados das cinzas das queimadas.
Segundo Flandrin e Montanari, constatou-se que com as primeiras fogueiras já aparecem indícios da cocção de alimentos (FLANDRIN, Jean-Louis e MONTANARI, Massimo, 1996, p. 44).
Segundo Herculano-Houze:
Cozinhar com o calor quebra as fibras de colágeno que dão dureza à carne e amacia as paredes rijas das células vegetais, expondo seus depósitos de amido e gordura. Os alimentos cozidos fornecem 100% de seu conteúdo calórico ao sistema digestivo, porque são transformados em papa na boca, depois digeridos completamente por enzimas no estomago e no intestino delgado; ali uma vez convertidos em aminoácidos, açucares simples, ácidos graxos e glicerol, são rapidamente absorvidos pela corrente sanguínea. E, contraste, os mesmos alimentos podem fornecer somente 33% da energia em suas ligações químicas quando consumidos crus, pois, por serem mais duros, são engolidos ainda em pedaços, portanto são quebrados e digeridos apenas parcialmente. (2017, p. 269)
Não é apenas o ganho a maximização do rendimento calórico pela maior biodisponibilidade dos nutrientes que o cozimento trouxe, mas também o menor tempo para digeri-lo e utilizar essa energia. O ganho no tempo para deglutir um bife assado, muito menor do que se o mesmo fosse cru, iniciou um processo de “ócio criativo”, ou o “dolce far niente” do povo itálico moderno. Isso significou, na prática, que esses hominídeos ancestrais se utilizavam desse tempo ganho (com o cozimento) com atividades que podem ser consideradas “intelectuais”, com as devidas proporções ao termo.
Isso quer dizer que os indivíduos selecionados naturalmente com o maior numero de neurônios agora podiam utiliza-los em atividades que compreendiam a organização, manutenção e segurança daquele grupo social. Organização compreendia a articulação e planejamento, por exemplo, da atividade de caça, definindo qual a participação de cada membro do grupo naquela atividade. Esse tipo de interação e reflexão só foi possível pelos fatos de terem um encéfalo neuronalmente desenvolvido , em especial em seu córtex e cerebelo, energia para suprir-lhe o funcionamento e tempo para colocá-lo em atividade reflexiva.
O decorrer dos milênios permitiu que esses humanos “primitivos”, com esses elementos reunidos, pudessem desenvolver também a agricultura e o confinamento de animais para sua subsistência, abandonando, assim, a vida de coletores e adotando a vida sedentária e todo o desenvolvimento social em decorrência disso.
1.4 – A mesa da felicidade
Agora com elementos que possibilitam entendermos nossa evolução natural desde o Big Bang, a formação dos nossos elementos químicos nos núcleos de estrelas distantes e antigas, a formação da Terra, dos primeiros seres unicelulares, os pluricelulares, os grandes répteis e sua extinção, os primeiros mamíferos e sua extinção, a explosão cambriana, os primeiros primatas e sua extinção, os primeiros hominídeos e sua extinção, a evolução dos hominídeos e a extinção da todos eles, exceto os H. Sapiens.
Com essa visão panorâmica, brevemente apresentada acerca da evolução humana, temos como intuito demonstrar que diante da imensidão temporal que a antecede estamos, diante da natureza cosmológica, em estágio embrionário considerando que o homem moderno surgiu há 200 mil anos e que o advento da agricultura somente há 10 mil anos, quando se findou a era glacial .
Ainda assim tendemos a nos dissociarmos de nossa condição natural, ignorando, no mínimo, 200 milhões de anos de evolução, pelos erros e acertos da natureza. Porém, em que pese toda essa carga evolutiva impressa em nossa memoria celular, somos humanos, ou melhor, primatas bípedes dotados de 86 bilhões de neurônios e que, antes de tudo, aprendeu a fazer churrasco.
Sem nos olvidarmos de que nosso objeto fulcral de reflexão e compreensão não é a evolução humana em si, mas como enquanto “animais humanos” lidamos com o entendimento do que é ser feliz. Em vista do que foi exposto nas linhas acima, a partir de agora consideraremos “humanos”, para fins da presente apreciação, o H. sapiens apenas; esse hominídeo que surgiu há aproximadamente 200 mil anos, e que nesse período irrisório da historia do universo e de tudo que nele existe, se tornou consciente da própria existência e da própria finitude.
Revisitando os elementos introdutórios deste trabalho, colocamos que a plataforma primordial da vida (genericamente) é a sobrevivência e a reprodução. No estado natural, quando contextualizados em seu meio, os animais passam todo o tempo de suas vidas a realizar essas duas “missões” as quais lhes incumbiram a natureza: sobreviver e se reproduzir. Para eles a sobrevivência implica em, diuturnamente, se alimentar e evitar ser predado, adiando (apenas adiando) o perecimento do indivíduo. O papel reprodutivo do indivíduo é, em ultima análise, também pautado na sobrevivência, porém, da espécie.
Contudo não há que ser negado que a função reprodutiva carrega, em si, também a perpetuação dos indivíduos cujo DNA são impressos na prole, fazendo-o “vivo” para além de sua existência. Podemos, portanto, afirmar que os animais (não humanos) são felizes enquanto estão vivos e alimentados? E ainda, quanta felicidade lhes imprime o ato de acasalar?
A fome e o ímpeto do acasalamento, para eles, são impulsos naturais a serem satisfeitos, como já dito, para sua manutenção e de sua espécie. Certamente não refletem sobre ou comemoram enquanto desfrutam de uma presa recém abatida ou de um fruto coletado. Não! Apenas os comem, atentos ao redor para que não lhes seja furtado o alimento ou que eles próprios não se tornem o alimento de outro. Essa satisfação momentânea perdura apenas enquanto há algum volume em seus estômagos.
Deduzimos, então, que o ato de comer, de per si, não constitui um estado de felicidade? Não nos animais. Considerando que a alimentação foi um dos elementos fundamentais para o sucesso adaptativo dos primatas da família Homo, em especial e principalmente dos da espécie H. sapiens, devemos por em pauta a ritualística do processo da alimentação, qual seja, a mesa, ou melhor, os fenômenos que ocorrem em torno dela no que tange o elemento gregário humano.
Se o ato de cozinhar os alimentos propiciou aos hominídeos ancestrais maior vantagem nutricional, também estabeleceu, fomentou e desenvolveu importantes acontecimentos no plano social. Nos humanos (sapiens sapiens) modernos, o sistema que motiva a fome é primitivo e em comum aos outros mamíferos (não apenas a esses), ou seja, estruturas neuro-biológicas despertam a fome quando há insuficiência de recursos energéticos disponíveis. Então comemos. Todavia, não apenas “comemos”. A alimentação para o ser humano é um ritual social.
Vimos que a partir do momento que o humano primitivo domesticou o fogo iniciou, também, a cocção de alimentos. Essa atividade reunia os indivíduos daquele grupo ao redor da fogueira, momento o qual debatiam, planejavam e interagiam acerca das necessidades de proteção e subsistência do núcleo do qual faziam parte.
Ainda hoje, e desde as primeiras civilizações, cerca de 10 mil anos atrás, o ato de se alimentar foi além da ingestão irrestrita de gêneros alimentícios com a finalidade de suprir as necessidades energéticas de suas células. A alimentação passou a ser ritualizada e ter os contornos do que isso significa para os humanos, qual seja, a expressão máxima de sua natureza gregária.
No século XVIII Brillat-Savarin escreveu “A fisiologia do gosto”, considerada a primeira obra dedicada à “gastronomia” traz a seguinte preleção sobre o sentido das refeições na cultura humana:
As refeições, no sentido que damos a essa palavra, começaram com a segunda idade da espécie humana, ou seja, no momento em que ela cessou de se alimentar apenas de frutos. O preparo e a distribuição de carnes fizeram a família se reunir, os pais distribuindo aos filhos o produto de sua caça, e os filhos adultos prestando a seguir o mesmo serviço aos pais envelhecidos. Essas reuniões, limitadas inicialmente aos familiares mais próximos, estenderam-se gradativamente às relações de vizinhança e amizade. Mais tarde, quando o gênero humano se espalhou, o viajante fatigado veio participar dessas reuniões primitivas, e contou o que se passava nos lugares distantes. Assim nasceu a hospitalidade, com direitos reputados sagrados em todos os povos, pois mesmo os mais ferozes tinham como dever respeitar a vida daquele a quem fora consentido partilhar o pão e o sal. Foi durante as refeições que devem ter nascido ou se aperfeiçoado nossas línguas, seja porque era uma ocasião de reunião que se repetia, seja porque o lazer que acompanha e segue a refeição dispõe naturalmente à confiança e à loquacidade. (BRILLAT-SAVARIN, 1995, p. 168)
O autor, ainda, continua diferenciando o prazer de comer e o prazer da mesa, no excerto que segue:
(...) O prazer de comer é a sensação atual e direta de uma necessidade que se satisfaz. O prazer da mesa é a sensação refletida que nasce das diversas circunstâncias de fato, lugares, coisas e personagens que acompanham a refeição. O prazer de comer, nós o temos em comum com os animais; supõe apenas a fome e o que é preciso para satisfazê-la. O prazer da mesa é próprio da espécie humana; supõe cuidados preliminares com o preparo das refeições, com a escolha do local e a reunião dos convidados. O prazer de comer exige, se não a fome, ao menos o apetite; o prazer da mesa, na maioria das vezes, independe de ambos. (Idem, 1995, p. 170)
De fato, conforme já havíamos delineado, no ato de deglutir há a satisfação fisiológica instantânea, porém, no ritual da comensalidade, tipicamente humana, está o prazer que leva à felicidade.
Assim, podemos afirmar que felicidade ligada à alimentação não está no ato mecânico de deglutir, ou conforme a intuitiva reflexão de Savarin, “o prazer de comer”. Esse é instintivo e comum em animais não humanos, como uma satisfação fisiológica a um imperativo natural, autônomo e irrecusável.
Já o “prazer da mesa”, que podemos definir como comensalidade, a máxima expressão social do elemento gregário, próprio do ser humano e já evidenciado em extintas espécies de Homo, se expressa a felicidade na convivência, no compartir, no partilhar o alimentos e ideias, inclusive no próprio ritual do preparo. Essa felicidade é inata do ser humano e desde o princípio já a desfrutavam, porém, a reflexão acerca da felicidade, ou seja, a produção mental consubstanciada nesse tema, em processo sistemático e organizado, se iniciou há poucos milênios.
2 – A mente humana e a filosofia da mente: aspectos elementares
Comumente utilizados como termos sinônimos, a mente é, de fato, um produto da atividade cerebral. A abordagem da “mente” aqui será especificamente filosófica ou, o que chamamos de mental?
O estudo da mente, no que tange sua compreensão filosófica, importa a análise de duas vertentes de pensamento: a doutrina em que a visão da mente é fortemente influenciada por religiosidade e pela metafisica tradicional; e o olhar com cunho estritamente científica. Cremos que a procura ao entendimento da mente humana se inicia com a concepção da imortalidade da alma. Nessa concepção se encerra a crença na separação entre o físico e o etéreo, o corpo e a mente.
O ritual fúnebre, ao que tudo indica, não é exclusividade do H. sapiens moderno. Os neandertais (Homo Neanderthalensis) podem ter tidos semelhantes ritualísticas . Se tratando de fato de rituais funerários dessa espécie de Homo, isso indica mais do que apenas do que simples enterro dos mortos por questões sanitárias e do afastamento de predadores. Indica que esses rituais indicam que os neandertais preparavam seus semelhantes mortos para uma “pós vida”, seja lá o que isso queira dizer. O ponto é que as tradições de sepultamento com junção ao corpo de ornamentos sinalizam para a crença de uma sobrevida da alma, ou da mente.
Aqui cumpri-nos definir termos que por muitos pensadores da antiguidade (e por vezes hodiernamente) foram utilizados como sendo nomenclaturas da mesma “substância” a qual origina e sustenta a vida do corpo orgânico, quais sejam: alma, intelecto e razão como formas de designação de “mente”. Para evitar qualquer dificuldade de entendimento dá-se à “alma” designição de cunho religioso; “Intelecto” como a capacidade de intelecção, compreensão e aprendizagem; E à “razão” como capacidade de raciocinar que conduz à indução ou dedução de algo ou alguma eleição de uma opção apropriada de algo.
Essa indicação inicial de que a consciência, ou a sabedoria, ou a alma, ou a mente era advindo de um “sopro divino”, ou melhor, um fenômeno extracorpóreo, apontava para o entendimento de que a “mente” não estava ligada à matéria, mas subsistia “de per si”. Corroborando essa exegese, o próprio termo “filosofia” (como produto da mente que é) criada por Pitágoras, teve como fundamento o seguinte:
Segundo a tradição, o criador do termo “filo-sofia” foi Pitágoras, que, embora não sendo historicamente seguro, no entanto é verossimel. O termo certamente foi cunhado por um espirito religioso (grifo nosso) que pressupunha só ser possível aos deuses uma sofia (sabedoria), ou seja, uma posse certa e total do verdadeiro, um continua aproximação ao verdadeiro, um amor ao saber nunca saciado totalmente, de onde, justamente, o nome “filo-sofia”, ou seja, “amor pela sabedoria ( REALE, Giovanni, 1990, p. 21.)
Platão , ainda na antiga Grécia, concebia a alma a partir de uma concepção mitológica. O orfismo, religião da época, concebia o ciclo das reencarnações . Com base nessa mitologia, quando desencarnadas, as almas podiam ver com clareza a formas perenes com as quais o Demiurgo . Quando encarnada, a alma perde a capacidade de ver a forma verdadeira do mundo, e sequer se lembram delas quando contempladas no mundo etéreo. Desta forma, Platão concebe a lembrança (ou a memória) como forma de aprendizado. Para ele, a alma é imortal e não se decompõe com o corpo, reencarnando novamente no mundo físico onde experimente de toda sorte de sofrimentos, desesperos e prazeres.
Disso denotamos que para Platão, a alma encerra o conhecimento e sensações humanas, ou seja, é a “mente” do corpo físico, portanto, apartado dele. Já Aristóteles , com uma concepção da alma menos influenciadas pela mitologia ou religião, dava à alma um cunho mais “cientifico”, onde aplicava seu entendimento de que todos os seres corpóreos são constituídos de uma forma e de uma matéria . Segundo esse entendimento, o corpo (vivo) tinha a forma da alma (mente), sendo esta, portanto, uma propriedade daquele. Segundo o filósofo, se a alma, ou intelecto, tem a capacidade de verificar a forma das coisas materiais, então ela não poderia ser também material.
Aristóteles indicava que, embora não dando à alma racional um caráter mítico, tinha ela uma independência funcional do corpo material. Assim, a mente não era produzida pelo corpo. Renè Descartes , por sua vez, rezava a auto consciência da existência humana era proveniente do pensamento e esta, por sua vez, era a substância última da alma. Prelecionava, ainda que o pensamento advém da alma, esta que tem a capacidade de raciocinar. Para Descartes os pensamentos eram colocados na alma por “alguém” perfeito, pois esta não haveria de ter a capacidade de errar, ou seja, Deus. As falhas humanas seriam oriundas do corpo, não da Alma, que vinha de Deus. Para ele, como os pensamentos advinha da alma, e os animais não tem pensamentos (como modo de raciocinar, apenas memorizar), logo os animais não tem alma.
Findado na ideia de que a alma tem uma natureza imortal independente do corpo, dotado de mortalidade e, como não há nada que possa destrui-la, seria, portanto, imortal. Porém, a alma e o corpo seriam interdependentes enquanto unidos. Vimos que no pensamento desses filósofos, em diferentes períodos, caracterizam a mente, como alma, uma entidade apartada do corpo físico. Um dualismo.
Já os pensadores contemporâneos assim abordam temas sobre a mente:
Por “mente” entenderemos, em primeira aproximação, um conjunto de poderes de representar/sentir algo para um sujeito consciente e situado, e não uma “coisa” ou substância imortal, como Descartes e certa tradição metafisica e teológica ensinavam. (LECRERC, 2018, p. 21).
Uma breve explanação pode nos auxiliar na construção do entendimento acerca do que vem a ser a mente humana, de forma simplificada. As percepções do mundo sensível são construções mentais. No simples e objetivo sentido de que nossos órgãos receptores captam as sensações e transformam isso em informações, como os fótons em imagens. Essas representações são produtos de uma atividade mental. Não dizemos que, com isso, a realidade se apresenta conforme um reducionismo do sistema cognitivo racional e, com isso, podemos atribuir às coisas, qualquer descrição que nos convenha, fugindo, assim, da realidade objetivamente apresentada, não! Entendemos que a realidade que se nos apresenta a partir de nosso sistema sensorial é objetiva.
Tais percepções são apreendidas e e classificadas assim como as dores e prazeres nos mais distintos níveis de intensidade. As representações mentais que são os constructos das imagens que denominamos memórias e também as quais formamos quando da ilustração de uma ideia abstratamente considerada também podem nos informar do que é a mente humana. Memórias (passado) e projeções (futuras) são atividades mentais próprias do ser humano.
Ainda, as emoções e os sentimentos são atividades da mente humana. Aqui podemos prelecionar que as emoções são estados fisiológicos atávicos que também ocorrem nos animais, desencadeadoras do sistema de “fuga ou luta”. Já os sentimentos, que são estados mentais decorrente dos desdobramentos fáticos das emoções são, por si, propriamente humanos, pois, como exemplo, não há “ira” em um canino, mas estado de pronto ataque, esta para defesa ou predação.
Podemos ainda elencar como atividades mentais a linguagem, a Teoria da Mente, que consiste nad habilidade de compreensão sobre seus próprios estados mentais e dos outros, que por vezes é denominado “empatia”.
A capacidade humana de contemplação do transcendental ou divino também é fruto de uma capacidade mental propícia a isso. Esse estado, exemplificativamente dispostos acima, constituem o domínio mental. Esse universo de representações que compõe o “mental” é posto de forma concatenada e organizada de forma inteligível como forma da construção do conhecimento, que denominamos “ciência”. Dentro desse conceito de conhecimento, a filosofia busca explanar essas representações mentais por meio de conceitos. Portanto, se a mente é a produção do cérebro humano, e este, por meio da filosofia, busca conceituar suas apreensões do mundo fático e seus sentimentos acerca deles. Um deles é a felicidade.
Se o conceito de felicidade parece estar impresso biologicamente na “mente” humana, como vimos acima quando sinteticamente abordamos os “prazeres da mesa” em Savarin, desde os primeiros hominídeos, o ser humano abordou, conceituou e classificou a felicidade desde que pôde fazê-lo de forma organizada por meio da filosofia. Esse sentimento humano, mentalmente representado, nos parece ser um aparato biológico inato tipicamente humano, mas apresentado como um “estado mental” quando conceituado pelo viés de nossa mente.
3 – Aspectos gerais das abordagens filosóficas acerca da felicidade.
A felicidade (ou a busca dela) foi importante ponto de reflexão na Grécia antiga, berço da filosofia. Aristóteles, o estagirita, em seus escritos denominados “ética a Nicômaco”, ensina, em última análise, que a felicidade é uma atividade da alma e que para sermos felizes devemos praticar e cultivar as virtudes.
Com relações estritas com os conceitos da Metafísica, relaciona que a cada ser é própria uma essência e com esta uma atividade que a exterioriza, exprime. Essa atividade humana é direcionada a um fim (telos).
Esse fim, que seria o “sumo bem do homem” é a Eudaimonia . Aristóteles inicia a Ética Nicomaquéia com a seguinte frase:
Toda arte e investigação, e igualmente toda ação e todo proposito, parecem ter em mira um bem qualquer: por isso foi dito não sem razão que o bem é aquilo a que todas as coisas visam (ARISTÓTELES, 1950, p. 14).
O filósofo propõe que o homem é “um ser racional”. O pensamento, fruto da atividade racional (nous), é o meio para a realização de um fim, seu bem supremo. No pensamento do homem está sua “virtude”. Atentemo-nos ao fato de que a felicidade (eudaumonia) aborda a racionalidade humana (mente) sendo esta o meio para a realização do fim supremo, qual seja, a felicidade. Podemos, então, de forma muito humilde, elencarmos tal assertiva com o fato de asseverarmos inicialmente que a felicidade (como fim) é inata à mente humana, como um dispositivo biológico evolucionário unicamente disposto em nossa espécie por meio da mente, esta entendida como cognição e consciência?
Ainda sobre a obra aristotélica, ela propõe que “a felicidade é o fim ao qual conscientemente tendem todos os homens” (REALE, 2015, p. 98). O homem médio pode definir a felicidade como mero fenômeno de “prazer e gozo”. Já o homem considerado culto, segundo Aristóteles, tem na honra a felicidade. E buscam a honra como forma de reconhecimento, perante os meios públicos, de como se fazem virtuosos e bons perante a convivência social, entendida no sentido grego como a vida pública de um homem.
Diz ainda que a atividade da alma segundo a razão é um fenômeno típico do homem, em especial do virtuoso, realizado segundo o bem e o belo. A bondade e a beleza são indissolúveis dos conceitos e ideias aristotélicas. Digno de nota é o fato de que a beleza para os antigos gregos tem concepção diversa do conceito moderno da mesma. Os gregos eram pautados pela simetria da medida, uma clara influência das ideias pitagóricas. A beleza da simetria das formas influenciou também as concepções filosóficas nos sentidos de que propunham, em linhas gerais, a temperança e o equilíbrio eram uma virtude ética e o excesso e a falta eram seus vícios.
Celebrado hoje como grande influenciador do pensamento filosófico ocidental, Aristóteles teve seu pensamento transcendente metafísico assinalado por uma grande ruptura a partir de seu discípulo Teofrasto. A nova fase filosófica que se inaugurava advinha principalmente da escola denominada “Jardim de Epicuro”, juntamente com a era Helenística.
Epicuro exprimia uma visão materialista da realidade, negando toda transcendência e atando-se à dimensão imanentista. Assim Epicuro negou todo desenvolvimento aristotélico.
Adota uma tripartição da filosofia, em “lógica”, “física” e “ética”. A lógica epicurista elabora modelos e regras segundo os quais nos possibilita o reconhecimento da verdade; a física, por sua vez, estuda os elementos constitutivos do real; a ética, por seu turno, é o estudo do fim (telos) do homem e é o norte sob qual a lógica e a física são pautados. Segundo Epicuro, quando do estudo da “ética”, o fim último do homem é a felicidade.
Epicuro adota um conceito materialista do homem. Esse caráter imanentista da essência humana, se distanciando do aspecto transcendente de Aristóteles, uma vez que esse advém diretamente da metafisica platônica.
A ética epicuréia prega que, sendo a essência do homem material, também o é o seu bem, desta forma a plena realização deste torna o homem feliz. O prazer é o meio tornar feliz o homem, todavia, esse prazer o qual refere-se o filosofo não é o prazer torpe, mas a simples ausência de dor no corpo e da perturbação da alma.
Interessante foi a divisão feita relativamente aos prazeres, para o atingimento, por meio deles, da aponia . Apontou as distinções dos prazeres segundo o qual, em um grupo seriam os prazeres naturais e necessários, essenciais à manutenção da vida do indivíduo, à exemplo da alimentação; outro grupo seriam os prazeres naturais, mas não necessários, ou seja, ainda são naturais, mas os objetos de satisfação de tais necessidades ultrapassam o necessário e adentram a esfera do dispensável. Ainda, elencou o grupo dos prazeres não naturais e não necessários, que são aqueles relacionados às honrarias humanas, como a riqueza e a fama. Segundo Epicuro esse último grupo deve ser desprezado, tendo real valia como caminho pra a felicidade apenas os do primeiro grupo, qual seja, os naturais e necessários. Importante anotar que a esse grupo foi rechaçado o prazer do amor (ainda que seja natural e necessário), pois este somente traz aborrecimentos aos indivíduos.
Quando trata sobre os verdadeiros prazeres, segundo a concepção do filosofo em pauta, isto é, os naturais e essenciais, ele aborda que a própria natureza impõe limites aos prazeres proporcionados por esse grupo, que é a satisfação da dor. Desta forma, quando temos fome, como exemplo, o limite desse prazer é a satisfação dela e o que ultrapassa esse limite natural, é o excesso sem importância.
As lições epicuréias de certa forma corroboram também com o cerne deste trabalho quando abordada a questão da plataforma primordial do ser humano, que se põe da alimentação e a reprodução. Sendo essas fontes naturais da felicidade, de per si, a ela agregamos, como humanos, o fator gregário social. À alimentação, além do fator da satisfação física e da saciedade, temos o prazer do convívio. Ao prazer relacionado ao congresso carnal, temos, de igual forma, a natural saciedade que por si já é um ato quimicamente recompensador e prazeroso. Ademais, como humanos, no que tange o prazer natural do ato sexual, temos a questão do afeto, que nos liga aos parceiros, tanto que a cópula frontal é típica e exclusivamente humana.
Se o cérebro humano constrói a felicidade aliando o fator natural ao fator gregário e afetivo, que se apresentam como indissociáveis para, além da satisfação físico-biológica, (comum a todos os organismos vivos), a construção da felicidade, logo a realidade da felicidade plena nos é ofertada de forma empírica pela realidade natural das coisas ou, conforme Epicuro, à disposição de todos.
RELEVÂNCIA E IMPACTO SOCIAL
A imperatividade da felicidade que traça os contornos da vida humana ao longo da história, em especial hodiernamente, carrega os moldes biológicos do que chamamos de plataforma primordial da felicidade. Tomando por base os aspectos recompensatórios com que o organismo lida com os aspectos das ações ligadas à sobrevivencia do indivíduo, bem como aqueles ligados à perpetuação da espécie, sugerimos que a busca da felicidade humana é um desdobramento do ações dirigidas a uma finalidade universal, qual seja, a felicidade ou o prazer.
No positivismo do século XIX, Jeremiah Benthan propunha em sua filosofia moral que a ação humana é (ou deveria ser) voltada ao fim da maximização do prazer (ou felicidade) e a diminuição ou eliminação da dor.
A complexidade do sistema decorrente do aspecto gregário, privilegiadamente humano, moldam os complexos comportamentos que levam os indivíduos à buscar a “felicidade”. Digno de nota que essa busca incansável é o que caracteriza a realização integral da mesma, sendo o meio o fim em si mesmo.
Nesse passo, no contexto socio-comportamental, à mesclar a felicidade com o aspecto norteador do comportamento em sociedade, como acepção positiva da saúde, o conceito do Bem-Estar Subjetivo integra concepções cognitivas e afetivas, desaguando no moderno entendido da “qualidade de vida”. O conceito de Bem-estar subjetivo enquadrado hoje no senso comum como qualidade de vida, termo cunhado nos anos de 1960, foi um desembocar das diversas frentes filosóficas apresentadas ao longo do tempo sobre o que vem a ser a felicidade e o papel do homem frente à ela. Se a felicidade (ou a busca dela) não é um estado efêmero de mero deleite ou prazer, ou ainda de eliminação pura e simples da dor, ela se apresenta, assim, uma caracteristica humana enraizada em seus genes.
Esse conceito foi proposto pela perspectiva de que a felicidade é a satisfação imediata de uma necessidade, enquanto a infelicidade se dá quando essas necessidades se apresentam como persistentes e insatisfeitas. Ademais, o fator diretamente relacionado à satisfação das necessidades estaria diretamente relacionado à fatores individuais, tais como as experiências de ordem pessoal e o histórico vivencial.
Essa justaposição do conceito de felicidade e bem-estar tem origem na reforma social que se instaurou a partir do conceito utilitarista inglês e, antes disso tem como herança o conceito iluminista do século XVIII. O conceito da moral utilitarista foi proposto por Jeremiah Benthan onde prougnava que na ordem moral, o prazer e a dor são os únicos fatores que realmente importam. Assim, a felicidade seria a maximização do prazer e a diminuição ou eliminação da dor. Essa felicidade apenas seria justificada se atingisse o maior numero de pessoas possível. A moral estaria estritamente diminuída a um hedonismo moral, onde todas as ações humanas estariam diretamente vinculadas à uma avaliação de prazer ou dor como consequência de suas ações.
Ora, isso nada mais é do que a utilização do prazer como recompensa, por exemplo, ao ato de se alimentar ou praticar o sexo. Sendo esse os pilares da sobrevivência do indivíduo e da espécie, respectivamente. Nada mais natural que a “natureza”, exerça uma força coativa (positiva) para que os organismos vivos se mantenham vivos e se reproduzam.
Esse hedonismo moral que propunha o utilitarismo marcou de forma indelével o desenvolvimento da dimensão e conceituação do que é a felicidade, inclusive e principalmente na pós-modernidade. A busca individual pelo prazer como fonte de felicidade e a eliminação da dor, nao apenas fisica, frise-se, como fonte de afastamento do mal que impede a felicidade norteou um estado de “eliminação da dor” através do “progresso social”, que seria ofertado pelo Estado Providência.
Em meados do século XX, especialmente no final da década de 1960 houve uma conversão dos valores sociais, até então fortemente fincados no progresso (para eliminação da dor) em sentido mais objetivo, de forte influência positivista, como o acumulo de riquezas, infra-estrutura e eliminação de doenças endêmicas. Inaugurou-se uma onde de valores não-materialistas, tendo a qualidade de vida como consequência, ou melhor, ao Bem-Estar subjetivo.
A decorrencia disso foi que o Bem-Estar tomou corpo em duas dimensoes: a dimensão material e a global. A qualidade de vida, assim passou a orientar que a felicidade pode ir além da dimensão material.
Ora, mas como vimos, a felicidade, ou sua busca, como elemento norteador das atividades, é inata ao ser humano e assim foi desde os primeiros hominídeos, como relatado acima. A felicidade é um estado natural em que o ser humano pauta seus atos. É o “telos” da ação humana. Para o homem, a felicidade está implicita em suas ações, pois assim a ordem natural se impõe, ao lado das plataformas primordiais comum a outros organismos, quais sejam, a alimentação e a reprodução (ou o ato de). Desta forma, em especial com o movimento positivista e o utilitarismo inglês, a felicidade foi “politizada”.
Quando do ato de nos alimentarmos somos recompensados, além da satisfação da necessidade ( a assim, a eliminação dessa “dor”), com a plenitude que segue com o processo digestivo. Assim também se mostra a recompensa natural que os organismos recebem quando copulam, isto é, o “orgasmo” químico que entorpece e eleva, satisfazendo, da mesma forma, uma demanda natural. Esses são comuns ao todos os animais.
A felicidade humana, no entanto, é a recompensa natural (por isso é sempre buscada) a toda ação humana quando, segundo Aristóteles, é virtuosa.
Se o ser humano é dotado de um cérebro que produz uma mente, consciente e cognitiva, nada mais elementar que a cada ação humana consciente e orientada pela cognição seja guiada pela busca de um “prazer”. Isso é essencialmente humano pois foi como a ordem natural recompensou a consciencia humana, que, em última análise, é a propria consciencia da natureza materializada.
O “prazer da mesa”, como supra citado, é o processo recompensatório do elemento gregário. Para essa recompensa natural, bastava um grupo assando um animal. Isso aliava a alimentação e o deleite de caráter típicamente humano, ou seja, a felicidade.
A partir do movimento utilitarista, juntamente com o positivismo, houve um reducionismo materialista nos aspectos geradores do prazer, ou felicidade. “Dor” e “prazer”, a felicidade foi sintetizada em dois elementos meramente sensíveis. Disso decorreu a distinção conceitual de Bem-Estar subjetivo em Material e Global.
O conceito de Bem-Estar Material esta estritamente relacionado ao rendimento do indivíduo na esfera econômica-social. Consideremos que esse conceito diz respeito às condições materiais que a riqueza disponibiliza ao indivíduo para este com o fim (telos) de ser feliz. Temos em conta que após a Revolução Industrial, contemporânea do Positivismo, o conceito de felicidade foi materializado em bens e serviços. A aquisição de tecnologia que expande a capacidade de acumularmos experiências, seja pela substituição da força muscular pela mecânica, seja pela maximização e otimização da relação tempo e produção, pois com tecnolgia fazendo o mesmo (ou mais) em menor tempo nos dava o benefício do ócio criativo e gregário.
Além do aspecto material foi conceptualizado também a dimensão Global de Bem-Estar. Isso abrange o “além” do material, como liberdade, relações de trabalho e relações inter-subjetivas, ou seja, o Bem-Estar da vida.
O conceito Global acabou por substituir o Material e, entre os anos 60 e 80, dando azo a estudos que se desenvolveram em torno da Felicidade e da “satisfação com a vida”. Segundo a lógica jurídica positiva, os costumes são geradores de normas, e não o contrário. Na década de 1970 com o ranço da herança sociológica do conceito de Bem-Estar, deu-se início à normatização de comportamentos, ou seja, elaborava-se a norma para ditar um comportamento. Sistema jurídico muito típico de Estados totalitários. Assim foi, por exemplo, com o tabagismo. Com isso iniciou-se o movimento de que poucos, auto-intitulados intelectuais, estabeleciam as diretrizes morais de conduta que, segundo eles próprios, eram (são) relevantes para o Bem-Estar Global, coletivo, e eficazes para o alcance de todos (?) ao supremo bem, que é a felicidade e o prazer. Assim, supostamente autorizando o indívíduo à sua busca pessoal pela felicidade, normativiza a conduta sob a batuta da massificação coletiva do conceito de felicidade.
Com isso o Estado-Providência tomou pra si a indicação sociológica do que seria ou não permitido em nome do Bem-Estar global do indivíduo, desde que atendesse ao viés coletivista. Com isso, e por fim, propomos qua a felicidade é status sine qua non do comportamento humano, inato, portanto, à finalidade de toda ação humana é instrinsicamente ligada a esta, como elemento primordial, ao lado das necessidades básicas em todos os organismos e, mais estritamente, aos mamíferos e primatas não humanos.
Não o é nos outros primatas (mais especifica e restritivamente) pelo fato de não possuírem a cognição e consciência que gera a mente humana, sendo esta gerada pelo cérebro com 86 bilhões de neurônios de nossa espécie. O H. Sapiens não criou o conceito de felicidade, pois esta o precede e o integra, como elemento estrutural e sobrevivêncialista.
Referências
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*Luís Gustavo Bassani


